Not-Furya, but BSB

Overlord é o codinome da mais soberana de todas as operações de guerra: a invasão da Normandia em 1944. Incontáveis histórias foram escritas, narradas e filmadas sobre tal batalha no norte da França. Das películas, para minha geração a mais marcante foi "O resgate do soldado Ryan", de 1998, onde havia um certo soldado chamado Adrian Carpazo.

Meu avô não lutou na Segunda Guerra Mundial, mas teve seu primeiro filho na década de 1950, assim como dezenas de outros milhões de ex-soldados no ocidente. Criando bebês que os norte-americanos chamavam de "boomers". Aqui na roça faltam cinemas ainda hoje, quem dirá nos idos da segunda república. Pai e avô meus, provavelmente viram filmes sobre a Overlord juntos, talvez "Agonia e Glória" (1980) ou "O mais longo dos dias" (1962), na TV é claro. Nada de telona. 

A invasão de praias com longas faixas de areia, cercadas de dezenas de aldeias charmosas, com adegas abarrotadas de vinhos e a poucos quilômetros de Paris, rendem filmes de maior apelo do que o desembarque em ilhas desoladas do Pacífico. Enquanto as armas da Normandia ainda estavam quentes da batalha, tão cedo quanto julho de 1944, a invasão da pequena Ilha Tinian não rendeu até hoje único episódio de série da TV, quem dirá um filme ganhador de Oscar. Mas ali morreram tantos seres humanos quanto no dia-D.

Ali tanto quanto em verdadeira constelação de ilhas na rota da armada americana de Chester Nimitz, e sua estratégia de island hopping. Tomadas uma por uma, mesmo que insignificantes, em torrentes de homens e fogo. Em loucura de olhar combinada com o próprio inimigo, que só se rendia frente a terra arrasada e suicídios em massa.

Para além do desbalanço cinematográfico, outras características fundamentais diferenciaram a Guerra do Pacífico e a Guerra da Europa. Mas o mundo tem ficado menor, a tal globalização que reduz todas as diferenças e distâncias. Até mesmo o horrendo preconceito que tratava como japonês tudo a leste do Irrawaddy, abate-se nas letras do k-pop.

Importam-se com os garotos do BTS, as meninas de Januária. Ainda que poucas sejam, importam-se. Houvesse hoje outra Tinian invadida, dariam proclame. E se decolasse outro Enola Gay dessa ilha?

Ilha de Tinian, 1944 (USMC on Flickr)

Vezes que converso com meu pai sobre sua juventude, sempre afloram lembranças da falta material que imperava naquela época. O passado, para ele não era melhor que o hoje. Meu pai não é um homem ressentindo, teve sucesso financeiro na vida e construiu uma família sólida. Mas meu José não é todos os Josés de seu tempo.

Aqueles que muito cedo sucesso tiveram ou nele nasceram, filhos de berços de ouro ou redomas de vidro, no passar das décadas não vêem-se receptores de tamanha progressão social quanto meu pai. Mesmo que no absoluto progrediram de fato, não o veem dado as distorções da realidade perpetradas pelo seus entornos. Bom era o antigamente, dizem eles, no longínquo de quando eram gordos dependentes de seus pais.

Pois que o mundo sempre é mais simples para os de barriga cheia e memória vazia. Um que tenha o fato sempre cheio, não se preocupa com futuros vazios. Vez estando nestes tempos adiante, fome de modo nenhum presente, fazem do agora um passado de memória boa, mesmo que severidades tivessem passado.

Toda memória é fraca frente a lembrança da fome e do medo.

Libellus vere aureus, nec minus salutaris quam festivus, de optimo rei publicae statu deque nova insula Utopia, mais lembrada que Tinian. Mesmo que desse juntado de letras você não compreenda as primeiras dezesseis palavras, guardando importância somente da décima-sétima, compreenderás. Talvez valha-te pelo menos a tradução da décima-sexta, sendo insula o latim para o português ilha. 

Utopia que traz terceiro idioma, do grego baseando a composição do que significado tem por o "não lugar", tratando de nomear a ilha imaginária da sociedade perfeita. Harmonia dos elementos, permitida neste universo apenas na paz de Nosso Senhor. Posto que Utopia dos homens, não pode existir. Não existe.

Tinian que também é ilha, existe. Foi de lá que ano seguinte a batalha não cinematográfica, decolou no sexto dia de agosto o bombardeio Enola Gay, horas depois vaporizadas estavam cem mil almas amarelas pelo preconceito, na pobre Hiroshima. Oitavo de lua depois, aos ares alçou-se o Bockscar, destruidor de Nagasaki.

Para seletos boomers, década malungos de meu pai José, tal passado que se importava com Tinian era em si Utopia de tempo. Uma ilha, com perfeição não geográfica mas sim temporal. Ilha que constringe época na qual o mundo era mais lógico, mais simples, mais certo, mais natural.

Em 1945 tu serias contra ou a favor do eixo Tóquio - Berlim, nada mais importava. Mesmo que os contra Berlim da Força Expedicionária Brasileira, fossem suportados pelo governo fascista de Getúlio Vargas. Mesmo que o defensores da pátria e da liberdade de Monte Castello, fossem comandados por Humberto Castelo Branco, o liberticida de 1964. Mesmo que os eixos e contra-eixos fossem todos eles a favor da violência suprema, seja dos campos de concentração ou das tempestades atômicas. 

O não lugar da ilha de Utopia, dá nome ao futuro sombrio de "Blade Runner 2049" como sendo uma Distopia, o "mal lugar". Que ainda é geográfico e no futuro. Estes boomers de visão turva do passado, vivem na etimologia da Retropia que não tem partes gregas, sendo o passado utópico ou "não lugar passado". 

Retropias não existem, e a época da Guerra do Pacífico não era melhor do que hoje. Degeneramos de certos modos, para avançar em outros muitos. Pelo caminho ficaram os que naquela época reinavam, hoje filhos e netos destes, por sobre rezes e montarias de circunstância, tentando em marcha lenta ou trote forçado nos levar para trás.

Chamo-os de Necromongers, de etimologia grega e inglês não formal, significando "os que professam a morte". Neologismo plagiado dos Chronicles of Riddick (2004), filme estrelado por Vin Diesel, o Adrian Carpazo de Resgate do Soldado Ryan. Nas praias da Normandia recriadas por Holywood, o ator escapou da primeira batalha para morrer logo em seguida, atingido por um sniper nazista. No universo necromonger, Riddick é indestrutível em três películas.

Mas para efeitos deste, aqui Vin Diesel é só elemento de ligação.

O que nos interessa são seus inimigos, os necromongers. Uma armada de assassinos interestelares, adoradores da morte em busca da vida. Vão de planeta em planeta, matando tudo o que há. Buscam a vida em outro universo, onde a própria seria a norma, não a exceção. Por observação simples, necromongers surgiram da constatação de que neste universo a regra é a morte, ou melhor, a não-vida. Julgam-se em missão de merecimento, de que se eliminarem toda a vida neste, teriam o direito de entrarem no outro.

Como tudo que para frente avança, os necromongers têm parte racional e verídica. Esta sendo que o estado mais comum deste universo é a não-vida, que não é por si a morte, visto que só morre aquilo que antes vivia. A não-vida é o que há quando tal nem chegou a viver. Nuvens de hidrogênio e hélio nos corações das estrelas, cercadas por massa dobrada de matéria escura que nem luz própria ou outrem brilha.

Em algum lugar deste espaço, o primeiro necromonger encontrou um portal para o tal outro universo. No que se chama de "o limiar", um poderia navegar levemente até a terra prometida a qualquer hora. Mas não o fazem, seguem a matar e destruir. Não o fazem porque se o primeiro que fez a travessia, no tal éden tivesse permanecido, seria ele o primeiro e último necromonger. Do que vale a vida se sobre um não se pode mandar? O que o ser humano busca não é a felicidade, é o poder. E da morte extrai-se poder, muito.

Tivesse Nimitz adotado a estratégia leapfrogging de MacArthur, e tivesse este adotado o rumo a Tóquio daquele; quantas vidas e sofrimentos seriam poupados com a abreviação da guerra? Com imperador submetido, até fanáticos se rendem.

Poder, nada mais que o poder, prolonga a guerra por mais tempo que seu necessário átimo inicial.

Pois que o primeiro necromonger criou a tal noção de merecimento, de só vigiar pelo limiar quando este universo livre estiver de toda a vida humana. Por esta ideologia, poder imenso obteve. Tanto que o tal e seus sucessores, muito mais gozaram neste espaço-tempo do que no outro, para onde foram somente após mortos. Ostes do inferno lideraram, naves sarcófagos cheias de fanáticos insensíveis como esqueletos.

Posto que um dia Riddick submeteu o império sem tomar nenhuma nave para si. Rei morto, rei posto. Riddick, o furiano, que morte não professava mas distribuía com fartura. Bonança macabra, numa falta absoluta de vida ao redor do seu poder absoluto, deste último o furioso se abnegou. As ostes perderam utilidade para seu comandante, que livre as enviou para o limiar.

E nunca mais foram vistas.

Jim Jones, que a morte encontrou.


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